Crachá não define
Eu sou fã de histórias não lineares, talvez porque me sinto protagonista da minha própria, mas especialmente porque o mundo atual não comporta linearidade. Imaginar uma carreira e vida estáveis em tempos de tanta movimentação é uma bola meio quadrada. A professora de Harvard Christina Wallace sintetizou tudo isso num livro entitulado de “The Portfolio Life: How to Future Proof Your Career, Avoid Burnout, and Build a Life Bigger than Your Business Card". Eu li artigos e entrevistas sobre o tema porém ainda não li o livro, e honestamente não acho que seja necessário lê-lo para absorver sua mensagem principal:
Christina propõe um modelo de carreira que vai além do tradicional “um emprego para a vida”. Em um mundo cada vez mais volátil — marcado por crises, transformações tecnológicas e incertezas — ela defende a construção de uma vida multifacetada, baseada em três pilares: (1) seu cargo não define quem você é, (2) diversificar é a melhor forma de se proteger contra riscos, e (3) ajustar continuamente seu portfólio pessoal conforme suas prioridades mudam é essencial. Parece bastante óbvio, mas eu conheço pouquíssimos profissionais que tem uma vida e carreira diversificadas ao mesmo tempo que de alto impacto; sim, há uma contradição entre estes pontos: à medida que amadurecemos na carreira, é importante se especializar para entregar resultados acima da média, porém esta especialização não deveria tomar espaço da exploração e aprendizados contínuos. Me lembrou o trabalho de Herminia Ibarra no seu livro Working Identity, que citei há uns 2 anos.
Outro artigo relacionado a carreira que gostei muito é o “Face it: you're a crazy person”, escrito por Adam Mastroiani do Substack Experimental History. Ele começa assim:
“Eu conheço muita gente que não gosta do próprio trabalho, e quando pergunto o que elas prefeririam fazer, cerca de 75% respondem algo como: “Ah, não sei... acho que adoraria ter um coffee shop descolado e único.”
Se eu estou num dia mais provocador, faço só uma pergunta:
“De onde você compraria os grãos de café?”Se isso já trava a pessoa, aí vêm as perguntas seguintes: …”
Em resumo, Adam defende que, para realmente entender se uma carreira faz sentido para você, é preciso “desempacotar” todas as tarefas e realidades do dia a dia, e não ficar na visão idealizada. Esse exercício — batizado de Coffee Beans Procedure — mostra que a maioria dos trabalhos exige rotinas e detalhes pouco glamurosos (como lidar com café, funcionários gripados ou constantes repetições de tarefas). Só alguém “louco” o suficiente para se dedicar a essas atividades continua motivado.
A mensagem é clara: não existe um “emprego ideal” sem esforço repetitivo e situações incômodas. O que conta, de verdade, é alinhar a sua própria dose de insanidade — suas paixões e obsessões — com as exigências reais da função. Se você se identifica profundamente com os detalhes obsessivos do que faz, pode se destacar de forma extraordinária. Mas é preciso primeiro enxergar se esse match existe.
IA em SaaS Verticalizado
Indo para um tema mais técnico — mas cada vez mais relevante no mundo do software — vale refletir sobre o papel da IA em produtos como ERPs e softwares de gestão. Uma vez implementados, esses sistemas sempre foram vistos como "insubstituíveis", o que explica o altíssimo LTV/CAC de players como Salesforce ou Totvs. Mas a estabilidade e a previsibilidade desses modelos estão sendo desafiadas pela IA generativa. E não é pouco.
No artigo “The Race to Become the System of Action”, Dave Yuan (fundador do fundo de investimentos de Private Equity Tidemark) argumenta que, no universo do vertical SaaS, a próxima grande corrida não é mais pela captura de dados (“systems of record”), mas por dominar a execução real dos processos (“systems of action”). Ou seja: não basta oferecer relatórios e dashboards – é preciso colocar a IA para fazer o trabalho em si, automatizando tarefas pontuais e acoplando-se diretamente ao fluxo do usuário (“workflow gravity”). Isso significa que quem subir esse degrau conquista o usuário, controla o processo e captura o valor econômico.
Dave ilustra com o exemplo de softwares jurídicos ou veterinários: um player que acelera transcrições, marca atendimentos, gera cobranças e integra com agendas consegue se tornar o nó onde as ações acontecem. E, a partir desse ponto de entrada natural, pode se expandir e neutralizar concorrentes incumbentes que ainda se limitam ao sistema de registro. A mensagem é clara: quem vencer essa corrida garantirá vantagem competitiva sustentável — transformando dados em ação e, logo, em impacto real.
Um exemplo de que eu gosto bastante no espaço de software para o setor jurídico é a startup Harvey. Fundada em 2022, Harvey é uma solução jurídica completa que vai além dos assistentes genéricos, integrando pesquisa, análise contratual e automação de documentos em um ambiente seguro e adaptado, customizado para profissionais do direito. Já consolidado entre grandes players, mostra que o legaltech está avançando de “sistemas de registro” para verdadeiros “systems of action”. A Coatue, um dos seus investidores, compartilhou seu crescimento em seu relatório anual (cuja leitura recomendo fortemente). Impressionante:
Obsessão, escolha a sua
Quem me acompanha já sabe: eu sou apaixonado por movimento. No último dia 22 de junho, corri minha quinta maratona — dessa vez, na minha terra natal (Floripa, meu bairrismo é assumido). Bati minha meta com uma prova forte, técnica e consistente. Senti domínio sobre o desafio.
Mudei muita coisa em relação à maratona anterior, em Dresden, na Alemanha — aquela para qual me preparei muito, mas onde acabei tendo minha pior performance. Ajustei a passada, a hidratação, ingestão de sal e carboidrato e, principalmente, a ansiedade. Essa danada que, junto do ego (outro velho conhecido), costuma ser meu pior adversário.
A sensação de superação desta prova foi incrível, similar ao o que descrevi no artigo “A única comparação justa". Ela ficou comigo por mais de uma semana. E a verdade é que minha obsessão só cresceu. De todas as obsessões que já tive, a corrida foi a mais saudável e sustentável: depende só de mim, é desafiadora mas possível, a evolução é constante, posso praticar em qualquer lugar, e o efeito colateral é me sentir mais forte — física e mentalmente. Superar a dor e a preguiça tem um valor imenso.
Saindo da corrida e dando um zoom out: eu funciono melhor com metas claras e desafiadoras, que exigem disciplina e rotina. Historicamente, minha superação sempre veio acompanhada de uma dose de obsessão. Tanto no profissional quanto no pessoal, foi esse foco extremo — essa loucura boa que faz a ideia vir no banho — que me empurrou para frente. Obsessão pode ser bom. Ser “meio louco” pode ser necessário.
O frio chegou e está fantástico para correr na rua.
Bora!
Alex
"Todos os extremos de sentimento estão ligados à loucura."
— Virginia Woolf, Orlando