Quando a maré seca de tech irá passar?
Dados, fatos e achismo sobre quando teremos mais combustível para as startups tupiniquins
Todos querem saber, ninguém tem a resposta precisa. Ouço diariamente de empreendedores ansiosos que a vida não está fácil para ninguém. É de fato impossível prever, mas podemos especular objetivamente, conectando os pontos e desenhando um cenário que, baseado em dados e comportamentos passados, makes sense. Embora eu não seja um economista, como estrategista e investidor em tecnologia tenho muito interesse em obter mais clareza sobre a duração do ciclo atual para ajudar meu portfólio a se preparar adequadamente. Como empreendedor teimoso que sou, sei por experiência que só consigo convencer as pessoas com base em dados e fatos. Então, vamos lá.
Desde o final de fevereiro de 2022, coincidindo com o estouro da guerra da Ucrânia, o mundo tech no Brasil e América Latina anda bastante tristinho. Refiro-me mais fortemente a nossa região porque os EUA estão mais animados desde o lançamento público do ChatGPT, no final do ano passado. No entanto, excluindo a inteligência artificial, que certamente veio para ficar e terá um impacto significativo em nossas vidas, globalmente temos sentido uma queda acentuada no apetite e nos preços dos ativos de tecnologia. Isso é verdade tanto para empresas públicas listadas em bolsa quanto para empresas privadas, e afeta principalmente as empresas maduras em comparação com as empresas iniciantes.
Com sorte, as empresas de tech mais maduras da nossa região captaram no boom e tiveram tempo suficiente para ajustar seus planos de negócios e cortar custos agressivamente, estancando a queima de caixa e estendendo o runway (tempo de operação até acabar o caixa), ou forçando um breakeven (zero queima de caixa) para ter mais opcionalidade futura (minha recomendação, quando possível). Por isso vimos uma forte onda de demissões em empresas de tech maduras no ecossistema tupiniquim, como iFood, QuintoAndar, Loft e várias outras. Para novos empreendedores, que se motivaram a largar seus empregos e construir em tech testemunhando a facilidade de levantar capital de seus pares nos anos 2019-2021, a realidade prática é que está difícil de fazer a coisa andar. Refiro-me a colocar combustível no tanque da máquina de geração de valor que é uma startup early stage (imatura), que tem muito a fazer e a provar e tipicamente não tem receita suficiente para seguir num caminho de breakeven. Há também a galera que está com a motivação, modelo de negócios e co-founders prontos para pedir as contas na firma e começar a executar o sonho; esta nova geração de empreendedores está aguardando uma sinalização mais positiva do mercado - fundos e anjos - de que há e haverá combustível para tirar o projeto do ppt ou notion (este último bem mais cool). Obviamente, estou simplificando e extrapolando o que é verdade para a maioria, porém há fundos que estão ativos no early stage e empreendedores fazendo acontecer com capital institucional (de fundos), de anjos, de family, friends e fools, ou do próprio bolso, e se virando no melhor estilo empreendedor brasileiro. Chega de enrolar, e vamos ao meu exercício de bola de cristal.
Uma revisão do porquê chegamos aqui
Nos últimos anos, testemunhamos um boom impressionante de investimentos no setor de tecnologia, impulsionando o crescimento de startups e empresas inovadoras em todo o mundo, o que também se refletiu fortemente no Brasil e na América Latina. Globalmente, o fator mais relevante foi a baixa taxa de juros, que permitiu que empresas que precisavam de capital para crescer, como é o caso das empresas de tech que investem para ganhar mercado, tivessem acesso a dinheiro muito barato. Isso é verdade tanto para empresas que contrataram dívida como para empresas que venderam equity, o caso das startups. O investidor estava animado para tomar risco porque deixar o dinheiro parado em ativos mais seguros, como a renda fixa, não trazia retorno algum. O hype de tech deixou todo mundo animadão no clássico efeito cascata, onde a onda de notícias boas sobre valuations crescentes, crescimento, e a revolução do digital aumentava o apetite de investidores e empreendedores exponencialmente. Eu tenho muita história boa pra contar dessa época. Aqui na Latam tivemos o papel importante da entrada do Softbank, que investiu bilhões e elevou várias das nossas startups à categoria de unicórnio (que valem mais de $1B). No entanto, desde o segundo trimestre de 2022, com a manifestação e o reconhecimento óbvio da inflação no Brasil e nos mercados maduros (que não sabiam o que era inflação há décadas) e o conflito Rússia - Ucrânia (e ocidente) que agravaram as pressões inflacionárias, uma sensação de "maré seca" se instalou, levantando questionamentos sobre o futuro dos investimentos em tech.
Embora a maré seca de investimentos em tech possa parecer uma desaceleração, é importante ressaltar que ela representa, na verdade, uma estabilização e um ajuste natural após um período de crescimento exponencial. Durante anos, vimos uma proliferação de startups e empresas emergentes, o que gerou uma parcial sensação de saturação no mercado e a necessidade de uma reavaliação dos investimentos.
Além da alta da taxa de juros, medida tomada pelos bancos centrais para combater a inflação, refletindo um aumento absurdo do custo de capital para as empresas, e as melhores alternativas de risco-retorno para investidores (a renda fixa voltou a ser bem legal), uma das razões para a maré seca de investimentos em tech é a maturação do mercado. À medida que mais empresas surgem e competem por recursos, os investidores se tornam mais seletivos e exigentes em relação aos projetos nos quais colocam seu capital. Isso não significa que não haja oportunidades, mas sim que os investidores estão buscando projetos com fundamentos sólidos, potencial de crescimento e diferenciação clara.
Inflação, juros e recessão
Estamos no Brasil, mas quando falamos em investimento em tech e startups precisamos considerar o apetite do investidor americano. Isso porque as rodadas de investimento em startups de série B em diante tipicamente são lideradas por fundos gringos. Para rodadas anteriores, temos ótimos fundos brasileiros e latino-americanos, porém estes fundos têm um portfólio que precisa captar séries mais avançadas, e quando os sócios percebem que está difícil para seu portfólio captar eles puxam o freio de mão em investimentos early stage também. Só vale a pena entrar na série Seed se você acreditar que existirão investidores para a série A, B, etc. Startups de tech tipicamente levantam 5-6 rodadas de capital até se tornarem geradoras de caixa, e poucas têm a opção de decidir não captar para esperar o mercado esquentar novamente e obter termos melhores (ex. valuation mais alta, fundos mais gabaritados). Não tem jeito, está tudo conectado.
Como comentado acima, com a inflação bombando os bancos centrais elevam a taxa de juros, cujo intuito é aumentar o custo do dinheiro e frear o consumo. A elevação da taxa de juros pelo FED, nos EUA, de 0% em março de 22 para os atuais 5.25% ao ano está surtindo efeito sob o controle da inflação. Isso é bom. Se a inflação continuar a cair, o FED deve baixar a taxa de juros leve e gradualmente, o que injetará ânimo no mercado como um todo, mas especialmente em tech. O que é difícil é os bancos centrais equilibrarem a freagem com o crescimento da economia. Se frear demais entramos numa recessão, se não frear o suficiente não se controla a inflação. Então, a pergunta que fica é: essa freagem no crescimento econômico que está acalmando o consumo e a inflação causará uma recessão nos EUA (hard landing, ou pouso forçado) ou a economia continuará a crescer, mesmo que timidamente, e teremos um soft landing (ou pouso suave)? Isso determinará quando a maré seca de tech passará.
Pouco forçado ou suave?
Para prever de forma objetiva, precisamos olhar os dados macroeconômicos que apontam para a manutenção ou desaceleração da economia. Assim, hoje temos o cenário abaixo, com quatro sinais preocupantes e dois sinais positivos para o que vem pela frente na economia americana.
Os quatro sinais preocupantes para o ciclo econômico nos EUA são:
Estoques de varejistas: Os varejistas nos EUA anteciparam uma demanda elevada devido à pandemia, e seus estoques estão em níveis preocupantemente altos em relação à última década. Isso indica uma demanda lenta por parte dos consumidores. Antecipa-se muitas promoções nas vendas de Black Friday e final do ano na terra do Tio Sam, tudo na tentativa de desovar os estoques.
Resultados corporativos das empresas cíclicas: As empresas químicas, que são os primeiros elos da cadeia de produção, estão divulgando uma série de alertas de lucros, semelhante a 2008. Isso indica uma desaceleração na demanda das cadeias produtivas.
Enfraquecimento dos empréstimos bancários: O crescimento dos empréstimos bancários nos EUA está enfraquecendo, o que indica dificuldades para as empresas corporativas refinanciarem suas dívidas. Como as corporações americanas estão bastante endividadas, à medida que a torneira de crédito fecha, o risco das empresas não conseguirem cumprir suas obrigações de pagamento das parcelas aumenta. Parece estar cedo para uma preocupação relevante sobre isso, mas devemos ficar de olho.
Mercado de trabalho: Esse é o ponto mais preocupante. Apesar do mercado de trabalho nos EUA ter se mantido bastante resiliente nos últimos 12 meses, há sinais preocupantes, como o aumento dos pedidos repetidos de seguro-desemprego e uma taxa de desemprego crescente. Isso pode indicar uma fraqueza sustentada no mercado de trabalho.
Por outro lado, os dois aspectos favoráveis são:
Inteligência Artificial (IA): A IA está se desenvolvendo rapidamente e provavelmente terá um impacto significativo na economia. Ela pode gerar ganhos de eficiência em várias indústrias, o que impulsionará o crescimento econômico e reduzirá a inflação. No entanto, os efeitos econômicos amplos da IA provavelmente serão visíveis apenas daqui a 18 a 36 meses.
Mercado imobiliário: O mercado imobiliário dos EUA está melhor do que o esperado, com um aumento acentuado nas construções de moradias. Isso está fornecendo suporte para o crescimento econômico, ao contrário do que geralmente ocorre nessa fase do ciclo econômico.
Pesquisando sobre o tema, entendi que o que precisamos acompanhar nos próximos meses é a taxa de desemprego dos EUA. Isso indicará se o país está entrando em recessão ou não. Numa recessão, os investidores se tornam mais avessos ao risco e puxam o freio de mão, o que reflete numa queda nos preços dos ativos como um todo. Isso impacta o setor de tecnologia, certamente.
Por outro lado, novas tecnologias, como inteligência artificial, blockchain e realidade aumentada estão em constante evolução e ainda estão sendo exploradas em termos de aplicação prática. À medida que essas tecnologias amadurecem e encontram casos de uso sólidos, uma nova onda de investimentos em tech surgirá, impulsionando o próximo ciclo de inovação.
O fator Brasil
Além do contexto dos EUA, há ainda o fator Brasil. Somos um mercado grande e cheio de oportunidades, o que é ótimo. Todavia, o investidor gringo precisa acreditar que politicamente não haverá loucuras. É difícil crer que teremos estabilidade absoluta num país tão cheio de disparidades como o Brasil, porém é importante termos evidência de consistência e execução das políticas econômicas sem grandes escândalos de corrupção. A inflação está demonstrando sinais de controle e em breve a Selic (taxa básica de juros) deve baixar. Em outras palavras: não precisamos impressionar muito o gringo em relação a estabilidade, só não podemos assustá-lo demais com barbaridades que viram notícia nos principais jornais do mundo.
Além disso, é justo acreditar que temos um atraso de 6-12 meses em relação ao otimismo para investimentos em mercados privados demostrado nos EUA. Assim, sem grandes surpresas por aqui, eu acredito que …
Achismo: Segundo semestre de 2024
Ciente do que sabemos hoje, eu apostaria que os EUA terão um pouso forçado e que os mercados ficarão tímidos por alguns bons meses, voltando a mostrar apetite próximo a meados de 2024. Quando eu falo “mercados”, refiro-me à bolsa de valores (reage antes e mais rápido) e ao mercado privado (reage depois, é mais devagar), que estão interligados. Também me refiro ao mercado de tech nos EUA primeiramente, o que deve se refletir no Brasil com um atraso de 6 meses, sendo otimista (o que eu sou).
No atual cenário de incertezas, é importante reconhecer que o reaquecimento do ecossistema de investimentos em startups de tech no Brasil será gradual e não seguirá os mesmos padrões do passado. Como investidores, aprendemos a estressar a importância do unit economics e do modelo de negócio, o que se traduz em sustentabilidade e escalabilidade. Nesse contexto, modelos como SaaS B2B destacam-se como particularmente atrativos.
No entanto, é na baixa que existem as melhores oportunidades. Para fundos que estão capitalizados, vale a pena convencer os limited partners (LPs, os investidores dos fundos) que agora é um momento excelente para encontrar ativos a preços atrativos. Isso é verdade para startups jovens e para companhias mais maduras, que estão muito mais abertas a conversarem com novos investidores e a negociarem preço. Para fundos do early stage, é o momento de (1) fortalecer a rede com empreendedores, (2) de fato ajudar o portfólio com temas operacionais, sendo muitas vezes o mentor e coach dos fundadores que se vêem assustados na maré de más notícias, e (3) de investir nas melhores equipes sem a pressão de tempo absurda que era prática comum até recentemente.
A forma de captar dinheiro para as startups mudou definitivamente. Muitos no Vale do Silício concordam que a era do dinheiro fácil acabou, marcando o encerramento de um ciclo que se estendeu de 2010 a 2022.
Empresas que oferecem produtos como robôs de pizza que fazem pizzas ruins ou espremedores de suco com conectividade wi-fi para a cozinha, e aquelas que requerem investimentos de +US$ 50 milhões antes de alcançar unit economics positivos, não terão mais espaço no universo dos investidores.
Isso é bom. A barra sobe. Teremos melhores empreendedores e melhores investidores, elevando o nível do mercado. Estamos diante de uma nova era que, com paciência, se mostrará cheia de prosperidade.
Pode ser que minhas previsões sobre o momento de recuperação estejam completamente erradas. Somente o tempo dirá. No entanto, há uma certeza que tenho: os ciclos são parte intrínseca do mercado e mais cedo ou mais tarde a maré volta a subir. Em um país com tanto potencial e oportunidades como o Brasil, com milhões de pessoas e empresas ávidas por crescimento e inovação, o melhor está por vir.
Let's hike!
Alex